🔓 «Hallyu» das escritoras sul-coreanas
"A literatura sul-coreana tem, hoje, um nome feminino" - entrevista para a coluna "Um teto todo dela".
O termo Hallyu diz respeito a uma espécie de onda/febre sul-coreana, isto é, à popularização e ampla difusão de produtos culturais da Coreia do Sul em diferentes partes do mundo na contemporaneidade: suas produções de séries e cinematográficas (vide a série Round 6 ou premiado filme Parasita), a música (os artistas/bandas do género K-Pop, por exemplo), a ilustração no segmento infantojuvenil...
Na literatura, há a particularidade de que uma parcela significativa desse boom é composto por obras de autoria feminina: nos últimos anos, dezenas de escritoras sul-coreanas foram largamente traduzidas em diferentes línguas e vêm figurando em listas internacionais de livros mais vendidos, tendo presença marcada também em reconhecidas premiações literárias no Ocidente, a exemplo de Han Kang (A vegetariana) e Bora Chung (Coelho Maldito), respetivamente vencedora e finalista no International Booker Prize em 2016 e 2022, ou Min Jin Lee – autora de Janeiro do Leia Mulheres Porto −, Cho Nam-Joo (Kim Jiyoung, nascida en 1982) e Kim Bo-Young (Sobre a origem das espécies e outras histórias) no National Book Awards entre 2017 e 2021.
Trata-se de uma produção literária que ecoa pela abundância, alta qualidade e narrativas/enredos instigantes, que parece ter dado mais visibilidade à literatura asiática oriental e encontrado uma posição fixa no mercado editorial internacional.
Num pontapé para aprofundarmo-nos um pouco mais nesse cenário da literatura sul-coreana de autoria feminina, conversámos com a criadora de conteúdo espanhola Eva Guerrero, detentora do projeto Libros Ásia, que produz rico material − entre resenhas, vídeos e demais publicações − sobre livros/autora*es e mais da cultura asiática oriental e do Sudeste Asiático (países como China, Japão, Taiwan, Vietnam etc.) e, também, da sua diáspora. Confira a seguir!
(A entrevista no original em espanhol está disponível aqui.)
💥 Parte I – Sobre a convidada
Primeiramente, como a literatura asiática entrou na sua vida, ou qual a sua relação pessoal com a Ásia que a levou a criar o projeto Libros Ásia no Instagram?
Desde criança, e de forma muito habitual, pessoas pensavam que eu era meio asiática por causa dos meus traços faciais, por isso, de alguma forma, sempre me interessei pela Ásia. O meu primeiro contacto com a literatura asiática foi quando tinha 14 anos. Ia muito à biblioteca e peguei em O tumulto das ondas, de Yukio Mishima. Acho que foi uma entrada incrível neste mundo, porque nunca mais consegui parar. Continuei com Kawabata e com todos os clássicos japoneses, e a partir daí, com o passar dos anos e graças às novas traduções da literatura asiática, tive acesso à literatura coreana, chinesa, vietnamita...
Por outro lado, graças ao meu amor pela escrita e por este tipo de literatura, há quase três anos decidi iniciar o meu projeto @libros.asia no Instagram. Li todo tipo de literatura, mas queria mostrar minha visão do continente através dos livros para quem se interessasse, e parece que, felizmente, cada vez mais pessoas amam a literatura asiática!
Você tem uma escritora asiática favorita? Ou pode citar algumas obras asiáticas que foram escritas por mulheres que te fisgaram ou acha que merecem destaque?
Muitas! Acho que a literatura asiática contemporânea tem nome de mulher. Eu poderia citar Han Kang, que é uma das minhas favoritas e tem quatro livros traduzidos para o espanhol (meu favorito é “Human Acts” [Atos humanos – ed. Dom Quixote]), ou Cho Nam-joo, ambas coreanas.
Além disso, penso que existem autoras incríveis como Hiromi Kawakami (“El cielo es azul, la tierra blanca” é um livro que não me canso de recomendar), Banana Yoshimoto ou Mitsuyo Kakuta no Japão, ou Kim Thúy, vietnamita, que são maravilhosas e hão de ser lidas sim ou sim.
💥 Parte II – Sobre a literatura sul-coreana de autoria feminina
Vejo que a maioria das obras sul-coreanas – muitos romances e bandas desenhadas, por exemplo – que vêm sendo traduzidas para o Ocidente são escritas por mulheres (e, além disso, na versão em inglês do portal Korea.net há um artigo de 2021 que afirma que livros escritos por mulheres são hoje maioria no mercado editorial do país). O que soa mais curioso é que tantos livros escritos recentemente quanto outros mais “antigos”, publicados originalmente antes de 2017, começaram (re)descobertos.
Acha correto dizer que as escritoras têm sido as principais expoentes da literatura sul-coreana? Que elementos/razões atribui a este fenómeno?
Penso que, apesar de existirem grandes e conhecidos escritores homens na Coreia do Sul, foi graças a elas que pudemos conhecer e aprofundar a literatura do país. A minha primeira obra sul-coreana foi "Please Take Care of Mother" [Por favor, cuida da mamã – Porto Editora], de Kyung-suuk Shin, e penso que elas têm uma forma de escrever muito mais direta, crua e poética. A sua perspetiva e rutura com certos aspetos da cultura coreana que as mantiveram oprimidas aparecem nestes livros, e penso que essa é uma das razões pelas quais a literatura sul-coreana tem, hoje, um nome feminino. É fácil simpatizar com essas leituras, sentir a sua dor, entrar nessas histórias.
Além de Min Jin Lee, vejo Han Kang (A Vegetariana - 2007), Cho Nam Joo (Kim Jiyoung, nascida em 1982 - 2016) e Shin Kyung-Sook (Por favor, cuida da mamã - 2009) como obras/autores muito bem reconhecidas. Teria algo a dizer sobre alguma dessas? E quais outras obras/autoras destacaria?
Coincidentemente, já citei todas nas respostas anteriores, porque as considero, todas, impressionantes e necessárias para compreender a literatura coreana e as suas formas de transmitir emoções. Para além dessas autoras, destacaria Won-pyung Sohn, que se tornou conhecida com "Almond"; Keum Suk Gendry-Kim, que está a trazer a história da Coreia para o Ocidente com os seus romances gráficos; Kim Hye-jin, que tem feito um grande sucesso com "About My Daughter"; Oh Jung-hee, cujo volume "Rivers of Fire and Other Stories" foi recentemente traduzido e é fantástico; ou Kim Ae-ran, que me surpreendeu com "It's Summer Outside", outra coleção de histórias sobre perdas, impecável.
Em suma, penso que este é um grande momento para a literatura sul-coreana escrita por mulheres e, pessoalmente, estou muito grata por tantas editoras estarem a apostar nelas.
Outro aspeto muito intrigante é que muitas obras parecem reunir temas que não são muito "familiares" aos leitores ocidentais, como a experiência da (pós-)colonização na Coreia do Sul, e outros com os quais, por outro lado, há muita identificação: as questões de género (patriarcado, sexismo, mercado de trabalho das mulheres, maternidade, etc.), por exemplo.
Que tipo de impacto pensa que a literatura feminina sul-coreana contemporânea realmente tem sobre os leitores internacionais?
Acredito, com base na minha experiência em divulgar um pouco da cultura asiática, que a História da Ásia é muito desconhecida no Ocidente. Poucas pessoas sabem sobre a Guerra do Pacífico ou a ocupação da Coreia do Sul pelo Japão. Os livros dessas autoras , que tratam desses temas de forma muito crua, mas sempre intercalados com histórias cativantes, estão fazendo com que o leitor ocidental se interesse pela história da Ásia, e acho isso fantástico.
Por outro lado, como você bem diz, grande parte dos romances sul-coreanos tratam de temas que nos são muito próximos, como o patriarcado, o sexismo ou a maternidade. Há leituras que incendiaram toda a Ásia, como o já mencionado “Kim Ji-young, nascida em 1982” porque são uma denúncia, e acho que todos deveriam lê-las. Acredito também que podemos nos identificar de alguma forma com esses romances, e isso nos faz ver que não estamos sozinhas, que nunca estaremos.
💥 Parte III – Sobre o romance Pachinko, de Min Jin Lee
Pachinko inicia com a frase de abertura: “A história esqueceu-se de nós, mas não faz mal”, e depois segue quatro gerações de uma família coreana pobre, desde a Coreia ocupada pelos japoneses até um Japão onde os coreanos são fortemente discriminados.
O que você considera mais interessante e/ou inovador neste romance de Min Jin Lee? E qual elemento mais te fisgou (em termos de contexto histórico, tema, personagem, escrita/narrativa, etc.)?
Pachinko é, sem dúvida, uma obra-prima. Para mim, é uma história tremenda, que tem todos os elementos para captar a atenção do leitor. Achei realmente incrível como a autora tece perfeitamente a história da Coreia do Sul e do Japão durante quase um século inteiro através de personagens tão bem construídos. As figuras femininas são o centro de tudo, mas ao mesmo tempo é muito interessante como os locais onde a trama se passa também são personagens em si: a casa onde se instalam em Osaka, o mercado, os salões de Pachinko.
Fiquei cativada pelo fato de que, sendo um romance fácil de se ler, é também uma aula de história. Para mim, o mais interessante é que mostra os pormenores mais escabrosos da vida dos primeiros coreanos no Japão e, ao mesmo tempo, faz-nos participar de uma saga familiar em que cada uma das personagens, mesmo as que parecem secundárias, ganham voz e são fundamentais.
✍🏼 Leia a resenha de Pachinko escrita pela Eva Guerrero / Libros Ásia (em espanhol)!
Eva Guerrero nació en Madrid en 1984, y es doctora en Historia del Arte y posgraduada en archivística. La historia es su pasión, y actualmente ha conseguido hacerla su profesión, ya que pasa su vida entre documentación histórica en archivos. Su pasión por la literatura llegó siendo una niña, gracias a su madre, lectora insaciable, y en su adolescencia comenzó a descubrir Asia y nunca pudo parar. Ha viajado varias veces a Japón y a Corea del Sur, y pretende, si la vida le da esa oportunidad, recorrer Asia entera.
A obra Pachinko foi eleita como um dos melhores livros do ano de 2017 nos Estados Unidos e abre o nosso ciclo de leituras de 2024!
🔗 Confirme presença no encontro - dia 27/01, 15:30, na Livraria Poetria.
Seleção de autoras sul-coreanas a serem descobertas e lidas!
📚 Por favor, cuida da mamã, de Shin Kyung-sook - Um sucesso internacional no início da década passada, recomendado pela apresentadora americana Oprah e cuja autora tornou-se a primeira mulher a vencer o Man Asia Literary Prize.
📚 Kim Jyioung, nascida em 1982, de Cho Nam-joo - considerado um dos fenómenos recentes da literatura sul-coreana (sem edição portuguesa)
📚 Amêndoas, de Won-pyung Sohn - a escritora também é cineasta, e o livro vem sendo conhecido por ser recomendado pela famosa banda coreana BTS (sem edição portuguesa)
📚 A espera e A árvore despida, de Keum Suk Gendry-Kim - duas novelas gráficas recentemente publicadas em Portugal
📚 Sobre minha filha, de Kim Hye-jin - Sem edição portuguesa (a capa brasileira da Fósforo, por outro lado, está belíssima)
📚 A vegetariana, Atos humanos, O livro branco e Lições de Grego - Todos os títulos da best-seller Han Kang já publicados em Portugal
📚 Bem-vindos à livraria Hyunam-dong, de Hwang Bo-Reum - Um romance de estreia que mostrou-se um fenómeno, com direitos de tradução em 20 países em apenas um ano (sem edição portuguesa)
📚 Inverno em Sokcho, de Elisa Dusapin - escritora franco-coreana cujo romance, segundo a revista literária Quatro Cinco Um, é polifónico e diz respeito a deslocamentos, encontros e literatura (sem edição portuguesa).
📚 Coelho Maldito, Bora Chung - Coletânea de contos e escritora finalistas do Booker Prize em 2023.
📚 O bom filho, de You-Jeong Jeong - Considerado um fenómeno literário do género do terror na Coreia, tendo a sua autora comparada a Stephen King.
💥 Conheça o SikTak e o Sweet Korea, dois restaurantes que dão a conhecer a culinária sul-coreana no Porto;
💥 Assista a série Pachinko na Apple TV
💥 A plataforma cultural Service 95 tem como fundadora a cantora Dua Lipa, que, em 2023, também selecionou Pachinko para o seu clube de leitura e ainda fez uma breve e esclarecedora entrevista com a escritora Min Jin Lee (disponível apenas em inglês):
💥 A Greta Livraria, de Lisboa, foi reconhecida em artigo do The Guardian sobre livrarias feministas na Europa – notícia extraída da newsletter da Sandra Bettencourt;
💥 A 2, 3 e 4 de fevereiro – Festival Porta-Jazz no Teatro Rivoli;
💥 De janeiro a março de 2024 – exposição «Mulheres», da artista plástica portuguesa Maria Godinho, no InterContinental Palace do Porto.