“Tenho pena de quem vai ler esse livro, e também de quem não vai ler”
O impacto de "A guerra não tem rosto de mulher" e Dicas Culturais no Porto.
“Todas ficarão felizes em falar com você. Estão esperando. Vou explicar: é terrível lembrar, mas é ainda mais terrível não lembrar”.
É assim que Valentina, uma siberiana que perdeu a mãe e o pai na guerra, se despede de Svetlana Alexiévitch, depois de uma das longas conversas retratadas em A guerra não tem rosto de mulher. O livro de Svetlana – denso, emocionante e potente – traz relatos de mulheres soviéticas que participaram da segunda guerra mas, ao invés de falar da guerra em si, fala de pessoas. Não foca no que aconteceu nas operações militares, mas “no que aconteceu com o ser humano ali, no que ele viu e entendeu”, inclusive sobre si mesmo. A reação de Valentina, admitindo que rememorar aqueles dias era extremamente doloroso, mas extremamente necessário, ecoa nas falas de muitas outras:
“No primeiro ano depois que voltei da guerra eu falava sem parar. Ninguém escutava, Então me calei…que bom que você veio!”
“Ah, minha filha, tenho medo das palavras. As palavras são terríveis…”
“Tenho pena de quem vai ler esse livro, e também de quem não vai ler.”
Como essas mulheres mostram saber muito bem, as histórias têm um forte papel na elaboração dos lutos, porque permitem ressignificar as nossas próprias histórias e iluminar os sentimentos confusos. E como são complexos e múltiplos os lutos que vêm com a guerra! Perde-se filhos e filhas, pais e mães, irmãos e irmãs, amigos, perde-se a juventude, partes do corpo, o lar, a vida social, as ilusões, o futuro: perde-se a si mesmo.
Conforme as palavras vão se articulando pra lembrar, organizar no tempo, dar sentido, vai-se criando uma narrativa. É essa narrativa, única para cada um, que, ao prover significado, contexto e perspectiva ao sofrimento, permite a reconstrução de si mesmo.
Em sociedades (ou épocas, pois, como Svetlana ressalta no livro, “o tempo também é uma pátria”) atingidas por guerras, onde o próprio sentido da vida é posto em xeque, a literatura se torna ainda mais essencial, porque oferece uma possibilidade de reconstrução social, de convalescença conjunta.
Ler este livro num momento em que uma guerra terrível está acontecendo na Europa, provavelmente envolvendo os filhos, netos e talvez bisnetos dessas mulheres, é ainda mais difícil. A sensação de que este é um livro muito duro foi unânime entre as participantes do clube que foram dividindo as suas impressões enquanto liam; no entanto, a coragem dessas mulheres (entre as quais, a escritora) nos dá, também, a coragem necessária pra encarar essas páginas, ou, em outras palavras, essa realidade.
Por Juliana Garbayo
Dicas culturais
Sexta feira, dia 27/01, é o dia internacional em memória das vítimas do Holocausto. O Batalha Centro de Cinema irá exibir o filme Europa Europa, às 21:15. A cineasta Agnieszka, com pinceladas de humor negro, conta a história verídica de Solomon Perel, judeu que escapa aos campos de concentração fazendo-se passar por russo em território ocupado pelas forças soviéticas, e mais tarde por alemão ariano em território do Terceiro Reich. Mais infos e bilhetes aqui.
Ainda esta sexta dia 27/01, a Cia de Dança portuguesa Vortice Dance Company, apresenta “A Sagração da Primavera”. O balé do compositor russo Igor Stravinsky, um dos maiores compositores do século XX. A releitura é feita por Cláudia Martins e Rafael Carriço.
A francesa Claire Danes, uma das maiores cineastas da atualidade, estará no Cinema Batalha este sábado dia 28/01 para uma conversa e antestreia nacional do seu novo filme, premiado com o Urso de Prata em 2022, Avec Amour et Acharnement (Com amor e raiva). A conversa tem entrada gratuita com retirada de bilhetes no local. Mais infos aqui.
Em Fevereiro, a Universidade do Porto apresenta o I ciclo de Cinema Peruano. Com diversos filmes de autoria feminina, as sessões (gratuitas) decorrem na Casa Comum (à Reitoria) da U.Porto todas as sextas-feiras do mês, sempre às 18h30. Veja os filmes em cartaz aqui.
Svetlana Alexievich e o(s) seu(s) “romance(s) de vozes[1]”
Considerada detentora de um género literário inédito, destacámos breves excertos sobre Svetlana Alexievich e as raízes para a escrita de A guerra não tem rosto de mulher, a partir de uma tradução livre do artigo “The memory keeper: The oral histories of Belarus’s new Nobel laureate”* (por Masha Gessen / revista The New Yorker, de 26. Out. 2015)
*“A guardiã de memórias: as histórias orais da vencedora bielorussa do Prémio Nobel”
Alexievich é a primeira pessoa a receber o Nobel por livros inteiramente baseados em entrevistas («o primeiro a ser concedido a um escritor que trabalha exclusivamente com pessoas vivas»). Isso levou alguns autores a elogiarem o comitê por vir a reconhecer um(a) jornalista(a). O título de um artigo do Los Angeles Times anunciando o prêmio chamou Alexievich de “repórter”, termo que ela considera quase um insulto: “Sei desde os cinco anos que queria ser escritora”, e não jornalista, disse ela.
Seus pais eram professores de escolas rurais, e ela a mais velha de três filhos de uma família advinda da extrema pobreza, mas que alcançou uma vida modesta mesmo para os padrões soviéticos. Ela se inscreveu no departamento de jornalismo da Belarusian State University, porque era o mais próximo que ela poderia imaginar de uma escola de redação/escrita. (...) Trabalhou em um jornal, escreveu poesias e peças de teatro e roteiros, mas continuou buscando, como pondera, “criar um novo texto”.
Alexievich queria renunciar a voz do autor e as cronologias e contextos usuais [em uma história]. Ela queria se aproximar das vozes que ouvia na infância, quando as mulheres da sua aldeia se reuniam à noite e contavam histórias sobre a Segunda Guerra Mundial. Eram sempre mulheres, porque a maioria dos homens havia sido morta na guerra (…) Ela nasceu três anos após o fim da guerra, na Ucrânia soviética, e cresceu na Bielorrússia soviética, onde os nazistas exterminaram judeus, ciganos e eslavos e incendiaram aldeias inteiras.
Quando começou a reunir material para seu primeiro livro, procurou mulheres que tivessem histórias semelhantes às de sua infância e perguntou a elas “sobre as coisas que eu gostaria de saber”. Conversou com mulheres que estiveram no exército.
“Eu não tinha interesse em quantas pessoas elas mataram ou como. Queria saber como uma mulher se sente”. E acrescenta: “Eu era jovem, então elas me contavam histórias da maneira como mulheres mais velhas contam para as mais novas”. Concentrar-se nas mulheres foi uma decisão sábia, relata: “As mulheres contam as coisas de maneiras mais interessantes. Elas vivem com mais sentimento. Observam a si mesmas e suas vidas. Os homens ficam mais deslumbrados com a ação. Para eles, a sequência de eventos é mais importante.” (…)
O livro resultante, A guerra não tem rosto de mulher (...) consistiria em uma série de monólogos de mulheres sobreviventes. A gloriosa vitória na Grande Guerra Patriótica foi o mito condutor da propaganda soviética, e o trabalho dos escritores soviéticos era o de enaltecer o poderio militar e exaltar o cidadão soviético. Em vez disso, tais mulheres relataram as tragédias sangrentas e confusas que viram em campo.”
Publicado logo na altura em que Alexievich venceria o Prémio Nobel de 2015, o artigo original (em inglês) ainda trata sobre a trajetória e censura desse livro na Bielorrússia, bem como a própria relação da autora para com o país e o mundo pós-soviético nas últimas décadas; para além do percurso adotado para a escrita de outras obras, em especial As últimas testemunhas e Rapazes de zinco – e a sequência de acontecimentos que lhe sucederam após estas publicações.
[1] Termo alcunhado pela própria autora, numa entrevista (exclusiva), em 2018, para o canal brasileiro TAG – Experiências literárias (Leia aqui).
Tradução por Tainá Amado
Do outro lado do front
Millions Like Us: Women's Lives in War and Peace 1939-1949 (em tradução livre Milhões Como Nós: A vida das mulheres na guerra e na paz), escrito por Virginia Nicholson em 2011, conta, a partir de diários, autobiografias, memoirs e entrevistas a vida íntima, relacionamentos, profissões, e emoções de diversas mulheres britânicas que serviram na 2º Guerra Mundial. Veja um review do livro pelo The Guardian.