Pilar Quintana e a intimidade da tradução
Entrevista com tradutora de Pilar Quintana, a síndrome "Madame Bovary" nas dicas de leitura e seleção de leituras do último trimestre

Em razão do Mês das Mulheres Tradutoras — celebrado majoritariamente no estrangeiro —, entrevistamos a Elisa Menezes, tradutora da edição brasileira [1] de «Os Abismos». Além de tradutora, Elisa Menezes é também jornalista e editora.
Alice: Katie Kitamura, em seu livro Intimidades (publicado em Portugal pela Quetzal) aborda a tradução como uma espécie de aproximação estranha e não recíproca, onde o tradutor adquire um conhecimento íntimo sobre quem é traduzido. Qual é sua relação com a tradução e como sua visão sobre este trabalho mudou com sua experiência na área?
Elisa: Bem interessante essa definição. Sem dúvida me sinto muito íntima das obras que traduzi. Embora eu sempre tenha trabalhado com texto (como jornalista e editora de livros), a tradução demanda um tipo de leitura muito particular. Não se trata apenas de encontrar os significados das palavras: traduzir implica muita pesquisa, estudo e reflexão sobre o texto. É preciso compreender o universo daquela história, o universo daquele autor, tentar entender as intenções e apreender a sua língua (num sentido mais amplo que o idiomático).
Tainá: Com base na primeira pergunta, como foi, portanto, o seu processo de tradução com Os abismos, – acredita que desenvolveu esse “conhecimento íntimo” com a Pilar Quintana?
E: Foi um processo bastante prazeroso. A escrita da Pilar me arrebatou tanto que me lembro de sentir saudades do livro quando não estava trabalhando nele. O grande desafio dessa tradução foi transpor para o português a precisão de ninja e ourives da autora, que sempre parece encontrar a palavra exata. É um texto curto, de frases curtas e muitos silêncios, e por isso mesmo cada palavra precisa ser escolhida com cuidado redobrado, para que mantenha a multiplicidade de sentidos do original. Isso vale também para a construção das frases. A edição desse livro foi muito bem cuidada e tive trocas excelentes com os editores a partir do trabalho do preparador de texto. Sempre peço à editora para ler o arquivo preparado, justamente porque, como tradutora, tenho essa relação muito íntima com o texto. As escolhas têm uma razão de ser e certas nuances podem passar despercebidas pela preparação. Por outro lado, o trabalho do preparador é fundamental e aprendo muito a partir das suas observações. O texto precisa de outras leituras, outros olhares.
A: Como é seu processo de tradução? Em livros como Os abismos, onde a cidade e período em que a história se passa são importantes para a trama, há um processo de pesquisa maior? No programa Por dentro do intrínsecos (no canal do Youtube da editora), você comentou que procurou a Pilar Quintana para tirar algumas dúvidas sobre o livro. Como foi essa experiência? Acredita que o contato com autores é um diferencial para a tradução?
E: Não diria que houve um processo maior de pesquisa. Os abismos foi o primeiro livro que traduzi de uma autora colombiana, então foi preciso pesquisar especificidades do espanhol falado na Colômbia. Mas todos os livros demandam pesquisa e elas podem ser bastante inusitadas. Às vezes por conta de uma frase é preciso passar horas lendo sobre arquitetura ou botânica, por exemplo. Os tradutores acumulam um conhecimento muito específico e profundo a cada trabalho (que pode variar de termos náuticos, palavrões, culinária etc.).
Foi a primeira e única vez que procurei uma autora para tirar uma dúvida. A experiência foi ótima. Havia duas questões que eu não tinha conseguido solucionar mesmo depois de pesquisar muito e consultar amigos colombianos. Então resolvi arriscar e mandei uma mensagem para a Pilar pelo Twitter. Ela me respondeu em seguida, muito simpática e gentil.
Essa é uma vantagem de se traduzir um autor vivo, sem dúvida, mas não acho que seja fundamental ou obrigatório consultar o autor.
T: Como você compara os dois grandes sucessos dessa autora – A cadela e Os abismos?
E: A comparação que posso fazer desses dois livros é do ponto de vista de leitora. Eu tinha lido A cachorra (na tradução brasileira da Livia Deorsola) para escrever um perfil da Pilar Quintana. Depois recebi o convite para traduzir Os abismos. Gosto dos dois livros, mas considero que em Os abismos a Pilar atinge a excelência de sua escrita. A precisão na escolha de cada palavra, o ritmo, os silêncios, a força da história e das personagens... É um dos melhores livros que li nos último anos.
A: No cenário internacional, tem havido uma maior valorização da tradução como uma arte literária, com grandes prêmios como o National Book Award incluindo a categoria na premiação (onde um autor vivo e o tradutor são premiados), acredita que esse movimento também é sentido aí no Brasil?
E: Não. O trabalho do tradutor não é reconhecido, é invisibilizado, e existe uma série de razões para isso. Precisamos criar uma cultura em que a tradução seja compreendida como um trabalho criativo, autoral. Quando lemos um autor estrangeiro estamos lendo esse autor através de quem o traduziu. Na prática, existe um apagamento da figura do tradutor, que muitas vezes sequer é citado/creditado nos materiais de divulgação das editoras. Há muito a ser feito. Precisamos lutar por remunerações mais justas, pelo devido crédito e pelo entendimento de que o trabalho do tradutor é essencial. Embora seja algo óbvio, não custa lembrar: o tradutor escolheu cada uma das palavras publicadas no livro.
T: Recentemente, você também traduziu, e tem divulgado (em textos e podcasts), as obras da Mariana Enriquez (Argentina). Qual a sua «relação literária» com outras figuras da literatura latino-americana feminina (contemporâneas e/ou não contemporâneas)?
E: Com exceção do primeiro livro que traduzi – Ikigai, dos escritores espanhóis Héctor García e Francesc Miralles –, todas as minhas traduções foram de autoras mulheres, contemporâneas, latino-americanas e espanholas. Considero uma sorte. Por força do trabalho, e também por interesse próprio, venho lendo muito mais autoras da América Latina nos últimos anos (tanto no original quanto em traduções). Aliás, temos uma geração de mulheres tradutoras no Brasil que vêm fazendo um trabalho excelente. É um privilégio acompanhá-las e poder trocar experiências com essas profissionais tão talentosas. Traduzir escritoras – sobretudo a Mariana Enriquez, de quem tive o privilégio de traduzir quatro livros – fez com que eu aprofundasse o meu interesse por obras escritas por mulheres, pela literatura e pela cultura latino-americanas.
A: O universo literário latino-americano é imenso, mas há menos divulgação de escritoras latinas do que de outras regiões. Há alguma autora pouco conhecida que adoraria que fosse mais lida?
E: Gostei bastante do livro de estreia da argentina Dolores Reyes, Cometerra, publicado no Brasil pela editora Moinhos (sem publicação em Portugal), com tradução minha.
[1] Uma vez que priorizamos a discussão feminina na nossa newsletter, optamos por um convite direto a Elisa Menezes em vez de Pedro Rapoula, tradutor da edição portuguesa de Os abismos.
🔔 O nosso encontro será no dia 26 de agosto: 15h30min, nos Jardins do Palácio de Cristal (ponto de encontro em frente à biblioteca municipal; levar toalhas para sentar, bebidas ou petiscos. Confirme a presença!

Síndrome de Madame Bovary
Com a construção da família moderna, no início do capitalismo, a vida privada consolidou-se como espaço feminino, onde o papel da mulher burguesa era o de dar ordens no lar, mantendo-o em funcionamento, e o de assegurar a boa criação dos filhos pelos empregados. O trabalho não era uma atividade para essa mulher. No vácuo de seu tempo improdutivo, cria-se um tédio que definha a sanidade − tal como a clássica personagem Madame Bovary, cuja representação precisa deu nome a um quadro clínico: “síndrome de Madame Bovary” −, caracterizado por uma insatisfação constante, face o contraste entre a ideia do amor romântico e o cotidiano doméstico. Tema central da segunda onda do feminismo, um grande número de escritoras dos anos 1960 e 1970 questionam a noção de realização feminina a partir do casamento e maternidade. Nas dicas desse mês, trazemos outras autoras que exploraram a temática.
📚 A história de uma hora / The story of an hour (conto de 1894): De forma irônica, Kate Chopin retrata o casamento como uma prisão, e seu fim como a grande possibilidade de uma mulher conquistar sua agência.
📚 O papel de parede amarelo: publicado em 1892, a obra de Charlotte Perkins Gilman é outra precursora deste debate; com uma narrativa que remete a um thriller psicológico, conta o processo de enlouquecimento de uma mulher que é internada pelo marido em um retiro terapêutico construído por ele mesmo.
📚 Mística feminina: uma das obras de fundação da segunda onda do feminismo, sobretudo nos EUA. Betty Friedan investiga o vazio existencial das donas de casa suburbanas, questionando a mística de que as mulheres encontram felicidade no seu papel feminino, o qual se opõe ao trabalho e à vida pública e ativa na sociedade.
📚 Ele e eu in As pequenas Virtudes: neste ensaio, Natalia Ginzburg disseca seu próprio casamento, analisando as desigualdades de gênero e seus efeitos perniciosos, principalmente na conquista de objetivos pessoais.
Sala de Escrita - Iniciativa recém-lançada pela escritora Nara Vidal (em parceria com Fernanda Ávila) para encontros sobre literatura e escrita.
Feira do Livro Porto - Entre os dias 25/08 e 10/09. As nossas sugestões:
sáb 02/09, 17h - Mas como nascem os livros? Portuguesas com M Grande (com Lúcia Vicente e Cátia Vidinhas) - Sessão sobre um livro juvenil profusamente ilustrado, que dirige-se e agrada a leitoras/es de qualquer idade, sobre importantes figuras femininas portuguesas ao longo da história;
dom 10/09, 16h30 - É sempre a tremer que levo o sol - Conversa com as poetisas Rosa Alice Branco e Francisca Camelo, no âmbito do projeto SIN.CERA: poesia e conversas honestas.
Destaques lançamentos femininos (julho - agosto):
Pequena Coreografia do Adeus (Aline Bei); Véspera (Carla Madeira) - Infinito Particular;
Acolher (Claire Keegan) - Relógio d’água;
Os meus homens (Victoria Kielland) - Dom Quixote.
📌 Leituras selecionadas para o último trimestre* (resultado da votação geral):

*Não realizamos encontros no mês de dezembro.