O retorno ao paraíso perdido – memórias de uma brasileira-alemã
Luciana Arbex escreve-nos sobre a personagem-título do livro de Abril – mês da Revolução e no qual celebramos, também, a literatura portuguesa de autoria feminina 🌹
Texto por Luciana Arbex (Professora de Alemão e Mestre em Estudos Luso-Alemães)
O Regresso de Júlia Mann a Paraty, de Teolinda Gersão, uma das mais consagradas escritoras portuguesas contemporâneas, apresenta as reflexões íntimas de personalidades importantes que viveram forçadamente “longe de casa” num período marcado pelas ameaças totalitárias que ganhavam força no início do século XX. A autora, profunda conhecedora da literatura alemã, transforma três figuras históricas em personagens de ficção, conseguindo mesclar dados factuais com outros imaginários e ficcionais por meio das narrativas das personagens.
Júlia Mann é a personagem menos conhecida das três apresentadas na obra. Por muito tempo, foi lembrada apenas como a mãe (brasileira) dos escritores Heinrich e Thomas Mann, mas desde os anos 1990 tem sido objeto de estudo nos meios acadêmicos alemão e brasileiro. Discutir a sua figura levanta questões a respeito da interpretação da obra de seus filhos, mas também desperta o interesse sobre o tema da nacionalidade associado às categorias de gênero e raça na sociedade alemã dos séculos XIX e XX.
Júlia da Silva-Bruhns Mann (1851-1922) nasceu no Brasil, onde viveu até os sete anos. Era filha de uma brasileira e de um alemão. Depois do falecimento da mãe, Júlia e seus irmãos foram levados para Lübeck, na Alemanha, onde cresceram e conviveram com a família alemã do pai. Casou-se com um alemão, teve cinco filhos e, depois de viúva, mudou-se para Munique, onde pôde viver com mais liberdade. Ser mulher brasileira na sociedade alemã do século XIX não foi tarefa fácil. É preciso ter em mente a imagem do Brasil e do Sul Global na Europa daqueles anos: um lugar de natureza exótica, berço de muitas doenças, com uma população indígena e negra “não civilizada” e “atrasada”. Essas imagens chegavam à Europa em inúmeros relatos de viagem, que tiveram grande papel como entretenimento para leitores curiosos sobre o “Novo Mundo”. Sob um manto de veracidade e autenticidade, os autores, geralmente brancos e de origem europeia, acabavam por misturar memória, autobiografia e interpretação da realidade.
Apesar de ter vivido 63 dos seus 70 anos na Alemanha, Júlia não escondia sua brasilidade. Nunca deixou de assinar o sobrenome Silva, escurecia os seus cabelos e expressava com frequência a sua musicalidade num meio fortemente puritano, burguês e patriarcal. Não se enquadrava naquela sociedade marcada pelo imperialismo, em que nacionalidade e raça se mesclavam numa afirmação de superioridade das nações colonizadoras. Ali, Júlia seria para sempre uma mestiça numa sociedade que valorizava a pureza racial. Provavelmente era daí que vinha o seu forte desejo de voltar ao Brasil, a terra onde, idilicamente, ela não seria julgada por sua personalidade e viveria em paz com os seus conterrâneos mestiços.
As memórias da primeira infância de Júlia foram escritas em 1903 e publicadas em 1958 em Aus Dodôs Kindheit (“Da infância de Dodô”) e serviram como fonte de pesquisa para Teolinda Gersão. Segundo a autora portuguesa, apenas o regresso a Paraty foi sua criação na narrativa.
Júlia não conseguiu retornar às suas origens, mas deixou registradas em seu livro as memórias do paraíso perdido, do lugar idealizado, cheio de significados. Afinal, atravessar a linha do equador no século XX foi, para muitos escritores alemães, um refúgio para escapar do triste cenário de guerra na Europa. Apesar de todos os problemas sociais daquele outro lado, ali podia-se ainda encontrar um lugar de esperança:
«O Brasil representa o lugar maternal que possibilita recuperar toda a parte de sensualidade e espontaneidade original reprimida, anunciando a plenitude de uma possível harmonia entre o estado natural e civilizado do homem, entre “Fühlen” (sentir) e “Denken” (pensar). (...) [Lá] Evocam-se (…) os tópicos de natureza paradisíaca, juventude eterna, paixão e alegria primitiva de viver; expressas em samba e carnaval». (Grossegesse, 2003: 322)
📝 Bibliografia e mais:
Os devaneios da intimidade em O regresso de Júlia Mann a Paraty, de Teolinda Gersão
O descobrimento do Brasil no romance Äquator de Curt Meyer Clason
Buddenbrookhaus (Casa-museu da família Mann em Lübeck)
Julia Mann e o paraíso perdido (Documentário de 1998, produzido pela ECO TV)
👉🏾 Recomendado:
📆 O encontro sobre O regresso de Júlia Mann a Paraty, de Teolinda Gersão, será na Livraria Exclamação (R. de Aníbal Cunha, nº 263) das 15h às 17h. Confirme a presença!
No mês da Revolução dos Cravos, promovemos especialmente a literatura portuguesa de autoria feminina. A nosso convite, Rosa Azevedo divulga o seu curso «Mulheres Raras Cultura Feminina na literatura – portuguesa do Séc. XX português», ao mesmo tempo em que assina uma breve lista de livros/escritoras contemporâneas a serem lidas:
a pedra é mais bela que o pássaro, de Raquel Gaspar Silva (ed. Caixa Alta, 2022)
Um livro cru que coloca no palco a humanidade naquilo que tem de mais animal e o seu oposto. Vários contos que se misturam e confundem mas que contam cada um a sua história selvagem.DOQSECONCQ - Do que se conclui que, de Marta Navarro (ed. A Tua Mãe*, 2016)
A Marta arriscou colocar na poesia todas as palavras não poéticas. Deixa-nos em suspensão e dúvida quanto ao que é a possibilidade da própria poesia.Dias Úteis, de Patrícia Portela (ed. Caminho, 2017)
A forma que a Patrícia tem de ver a literatura liga-se com o seu constante experimentalismo, seja na literatura, na dança e em todas as suas áreas de acção, que são inúmeras;Tatuagens de Luz, Cláudia Clemente (ed. Sistema Solar / Documenta, 2020)
Livro sobre o processo de pesquisa e encontro da figura da poeta Leonor de Almeida. É um tipo de livro que não terão visto muito por aí. A Cláudia ouve falar da Leonor de Almeida por ser a esteticista da avó que lhe tinha vendido um quadro surrealista e que também escrevia poemas. Depois, por diversos episódios pessoais, decide saber mais sobre a poeta. E começa um caminho, descrito no livro, cheio de coincidências, obstáculos, estradas que se bifurcam em caminhos insondáveis. O que está neste livro é um acto de generosidade da Cláudia para com a memória e para com a literatura.

Nas publicações de referência da História da Literatura Portuguesa do séc. XX escasseiam mulheres. Por um lado podemos afirmar sem estar longe da verdade que as mulheres escreviam menos que os homens. Mas porquê? E será que se justifica que os nomes de mulheres ao longo da primeira metade do século se contem pelos dedos de uma mão? Neste curso, vamos falar de uma cultura feminina, por oposição a uma escrita feminina, revelar o que se passou no século XX em Portugal, falar de escritoras, do meio onde elas tiveram de se afirmar, pensar em conjunto que fenómeno de apagamento foi este. E, acima de tudo, vamos devolver à literatura alguns destes livros e destas autoras.
Por Rosa Azevedo – licenciada em Literatura Portuguesa e Francesa, mestre em Edição de Texto, formadora em cursos de literatura portuguesa e hispano-americana e criadora da livraria e editora independente Snob (@livrariasnob).
Entre 18 a 23/04 acontece o Porto Femme - Festival Internacional de Cinema Feminino (há sessões gratuitas e pagas, a depender do espaço. Confira a diretamente a programação);
No dia 22/04, pelas 15h, decorre a conversa Agustina e as artes (inclusa na Uma exposição escrita: Agustina Bessa-Luís e a Coleção de Serralves, que encerra no dia 23/04. A entrada tem um valor de 3€);
De 28/04 a 01/05 terá lugar a Desobedoc - Mostra de Cinema Desobediente no cinema Trindade, com atividades paralelas no bistrô Almada Ponto (“A entrada é livre, o espírito insubmisso" - veja a programação);
Até o dia 30/04 decorre o Festival DDD - Dias da dança;
De 10 a 21/05 ocorrerão espetáculos e workshops no âmbito do FITEI - Festival Internacional de Teatro e Expressão Ibérica.
A partir da discussão do livro Instante, da poeta polaca Wisława Szymborska, confira outras sugestões de leitura partilhadas entre as/os participantes:
📚 A alma perdida, de Olga Tokarczuk (álbum infantil ilustrado);
📚 Livro de mágoas, de Florbela Espanca;
📚 Redaction, de Reginald Dwayne;
📚 Teaching my mother how to give birth, de Warsaw Shire (poeta colaboradora das composições de Beyoncé).