O corpo escrito de Annie Ernaux
A partir da leitura de O Acontecimento, nosso livro do mês, discutimos nessa edição sobre as repressões impostas ao corpo da mulher e a escrita como resistência.
O Acontecimento narra — à maneira de um thriller angustiante e visceral — a saga para realizar um aborto clandestino. Sua narrativa desapaixonada e analítica põe em causa não apenas a dolorosa experiência subjetiva, mas as condições sociais que o cercam. O que significa não ter o direito de abortar? Não ter o direito sobre seu corpo? Tal como na obra de Margaret Atwood, célebre autora de The Handmaid's Tale (O conto da Aia / História de uma serva), reflete-se sobre o controle reprodutivo como controle político. Mas, se em Atwood temos uma versão ficcionalizada dos efeitos do autoritarismo nos direitos da mulher, com Annie Ernaux temos a sensação de experimentar a versão quase crua de tão real. O esforço da autora em preservar a crueza dos argumentos é nítido nos parágrafos entre parênteses, onde ela deixa transparecer seu trabalho enquanto escritora: o de recuperar o acontecimento passado décadas antes sem imprimir novos contornos a ele, o que se revelará, ao fim do livro, como o seu grande objetivo:
“que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros”.
Das muitas interpretações desse pequeno trecho, a que aqui se oferece é: tornar público o corpo de uma mulher é um ato de coragem e rebeldia. A escritora Rachel Cusk, num excelente ensaio sobre Annie Ernaux (recentemente publicado no New York Times e traduzido pela revista brasileira Quatro Cinco Um[1] , reflete sobre esse mesmo tópico:
“Ela acreditou na escrita feito algumas pessoas acreditam na religião, como uma esfera onde o eu, a alma, pode encontrar abrigo.
Havia uma relação muito específica entre quem ela era como escritora e quem era como mulher: ambas habitavam o mesmo corpo. Era a esse corpo que ela estava confinada, concreta e artisticamente — ao seu destino social e econômico, às suas limitações de gênero, de localização geográfica e de tempo. O que acontecia a esse corpo e nesse corpo, e o que ele, por sua vez, fez acontecer nos anos entre o nascimento e o presente: eis os limites e a extensão do material dela.”
Ernaux poderia até ser vista como uma espécie de descendente de Scheherazade, cuja preservação da existência foi possível apenas pela habilidade narrativa. Mas Ernaux não narra uma história inventada. Ela narra a si mesma, e ao se apresentar ao leitor como a mulher que é, cria um espaço para que outras também sejam.
[1] O impacto da sinceridade: obra de Annie Ernaux surpreende por romper com tudo que podia ser escrito por mulheres (Acesso livre).
Alice Rangel Teixeira
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A série artística selecionada para abrir esta newsletter é de autoria da consagrada pintora portuguesa Paula Rego (1935-2022) − tendo sido criada em resposta à rejeição à proposta de descriminalização do aborto em 1998 em Portugal −, e em muito ecoa em outros pontos vários da narrativa de Annie Ernaux: as gravuras (cerca de dez, no total) são retratadas em ambiente doméstico, sugerindo a necessidade de clandestinidade do ato, e a expressão física e corporal daquelas mulheres evidencia a jornada emocional e bastante solitária de quem, naqueles tempos – ou ainda hoje, nos diversos países em que as leis relativas ao aborto permanecem imensamente restritivas −, procurava pela interrupção da gravidez. Além disso, sobressai o aspeto social espelhado nas gravuras: tal como na obra de Ernaux, o trauma em torno desse tema traz implicações ainda maiores se considerada a classe económica das mulheres.
🔊⏯️ Annie Ernaux | Writing as Sharp as a Knife - O webcanal dinamarquês de arte e cultura, Louisiana Channel − que também já publicou vídeos com outras autoras lidas no Leia Mulheres Porto, como Rachel Cusk e Leïla Slimani −, disponibilizou uma entrevista de 20min. realizada com Annie Ernaux no dia 15 do mês passado, intitulado “Escrita afiada como uma faca” (em tradução livre). Contém legendas em inglês e, pelo modo sucinto com que Annie Ernaux discorre a sua trajetória e “objetivos" literários, recomendamos vivamente assisti-lo.
Entre o relato verídico e a ficção especulativa, um espectro de autoras escreveram sobre o poder político que cerceia e subjuga o corpo da mulher. Destacamos alguns livros que tocam em diversos pontos dessa relação de dominação:
The abortion (original e tradução) - poema de Anne Sexton (prolífica poeta estadunidense da década de 1960, seu primeiro livro editado em português será pela editora brasileira Relicário), que entoa sentimentos de culpa e solidão em torno do tema.
Mordidas de tigre (link disponível em inglês) - conto pertencente à coletânea Manual para mulheres de limpeza / Manual da faxineira (Alfaguara, 2016; Cia. das Letras, 2017), da escritora Lucia Berlin; Uma mulher viaja do Texas para a fronteira com o México para realizar um aborto mas debate-se com a ilegalidade e as péssimas condições de tratamento.
As mães - romance estreante de Brit Bennett (publicada pela Alfaguara). Entrelaça o tema do aborto e suas consequências nas relações íntimas com a vulnerabilidade racial e pressão que a religião imprime sobre a mulher.
Despertar (Xenogênesis 1) A partir de uma trama de ficção científica, Octavia Butler explora questões como controle reprodutivo, reprodução forçada e manipulação genética que traça paralelos com a história de controle sexual e reprodutivo durante o colonialismo, além da eugenia presente na primeira metade do século XX.
Persépolis: A história em quadrinhos (banda desenhada) e autobiográfica de Marjane Strapi narra a infância no Irão durante a revolução Islâmica, detalhando as mudanças que gradualmente foram restringindo a liberdade das mulheres. Fez parte das nossas leituras em 2021.
Sou uma tola por te querer (publicado no Brasil, inédito em Portugal), o mais recente romance da premiada autora argentina Camila Sosa Villada explora em 9 contos a violência e o prazer imprimidos e experimentados por corpos transgêneros. Ainda sobre o mesmo tema, recomendamos seu romance As Malditas (BCF Editores em Pt)
O Acontecimento: filme baseado no livro de Annie Ernaux. Disponível no NOS Play
One Child Nation: documentário sobre a política reprodutiva imposta em alguns territórios da China para controle do aumento da sua população. Assista pelo Amazon Prime.
Órfãs da Rainha: filme ainda por estrear, conta a história das mulheres aos cuidados da Rainha de Portugal, que são enviadas de Portugal para o Brasil para serem forçadas a se casarem e constituírem família
📌 O encontro será no dia 29 de julho: 15h:30min, nos Jardins do Palácio de Cristal (levar toalhas para sentar, bebidas ou petiscos; e se calhar, protetor solar ☀️). Confirme a presença!