Maryse Condé, uma voz da literatura caribenha, negra e feminina
Uma imersão na vida da «dama da literatura das Caraíbas» e outras autoras a serem lidas...
«Sim, os negros podem escrever. Sim, os habitantes de uma ilha pequena e desafortunada, que nunca recebe atenção internacional, podem escrever».*
Batizada Maryse Liliane Appoline Boucolon, Maryse Condé** nasceu em Pointe-à-Pitre, uma antiga cidade da recôndita Ilha de Guadalupe (situada entre a Dominica e a Antígua e Barbuda – a zona das “Pequenas Antilhas”), e dessa petite partie du monde (‘pequena parte do mundo’), tal como refere em seus textos, logra, hoje, ser considerada a «grande dama da literatura das Caraíbas» pelo empenho com que assina uma obra marcante em prol da história e memória desse continente.
Advém de uma das primeiras famílias da burguesia negra em Guadalupe, cujos pais, por ela considerados “alienados pelas doutrinas coloniais”, incutiram a si e aos seus sete irmãos uma infância e educação profundamente imersas na erudição francesa (e comedidas quanto à língua e cultura crioula).
Quando chega à França na década de 1950 para concluir o liceu e iniciar os estudos universitários, diz então ter compreendido, no primeiro ano em Paris, «não ser francesa como os franceses» – em oposição ao que era ensinado em casa −, e, por contraste, é nesse país que começa a desenredar a sua própria ancestralidade plural.
Enfrentou a hostilidade racial da França moderna dos anos 50/60, ao mesmo tempo em que, nessa passagem para a vida adulta, estreitava laços com a comunidade das Antilhas francesas – estudantes e intelectuais de classe média, advindos principalmente de Haiti e Martinica, a residir nos arredores de Paris −, explorava e debatia assuntos antes ocultados no seio familiar, como a escravidão, a colonização e a crioulização. Relacionou-se com a juventude e militância africana presente em França, e sobretudo no ingresso à Universidade de Sorbonne, estabeleceu contacto com a intelectualidade negra e marxista da época.
Movida por essas vivências, enveredou pela escrita como num desejo de anunciar e denunciar para o mundo a diáspora negra e as realidades antilhanas, e também lançou mão de uma vida itinerante.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Embora já tivesse publicado um número de ensaios e alguns contos, a passagem pela África Ocidental durante toda a década de 1960 (viveu entre Costa do Marfim, Guiné, Gana e Senegal) moldou a sua trajetória como escritora. O encontro com personalidades históricas (de Malcolm X a Che Guevara), a amizade com exilados caribenhos, o testemunho a grandes convulsões políticas e movimentos de independência, o mergulho nas figuras, episódios e locais históricos, ao fim e ao cabo, foram determinantes para a sua “matéria-prima” sobre as pontes, do passado e do presente, entre os dois continentes e povos.
Seus anos em África (e a sua turbulência social e política) foram “duros e desapaixonantes”, porém fulcrais para um retorno/descoberta de si e lhe inspiraram a causa e a arte para as quais dedicaria toda a sua vida. Na Guiné, rascunhou o seu primeiro romance, Heremakhonon (que, sugestivamente, significa “bem-vindo à casa”, ou “à espera da felicidade”).
Sua carreira literária passa a coincidir com as outras profissões que exerceu, de professora de francês, tradutora, correspondente internacional e académica nos vários outros lugares onde residiu, como Londres, uma estância em Guadalupe e no Haiti, nos Estados Unidos até o retorno à França.
Em 1984, publicou Ségou (nunca traduzido e/ou editado em português): um best-seller com o qual deixaria a sua marca na literatura. Nos anos seguintes, continua a ser reconhecida pela aptidão (sobretudo) na ficção histórica afro-caribenha, resultante em livros como: Eu, Tituba, bruxa... Negra de Salem (publicado em 1986 e leitura de Outubro do Leia Mulheres Porto); La Vie scélérate (no inglês e espanhol, traduzido como “A árvore da vida” – uma saga familiar que gira em torno do Canal do Panamá e da ascenção da classe média em Guadalupe e arredores); Corações migrantes (reimaginação caribenha do clássico O monte dos vendavais ou O morro dos ventos uivantes, ambientada em Cuba e Guadalupe); e À espera da subida das águas (título de cunho metafórico, que versa «sobre êxodo, migração e diversidade nas Caraíbas e além»).
Explorou muito da sua visão política, feminista e da condição das mulheres negras nas histórias que escreveu, sendo uma das pioneiras nas Antilhas e na língua francesa durante o séc. XX.
Em meio a uma cultura e tradição literária caribenha ainda pouco valorizadas pelo mercado contemporâneo, Maryse Condé mostra-se uma voz sobejamente potente e que inspira e abre caminhos para uma maior celebração de outras contemporâneas suas nas letras antilhanas e de expressão negra.
Segundo Malaika Adero (sua antiga editora nos EUA, em 2000), o dito reconhecimento tardio da sua obra em muitos países advém de alguma “resistência” quanto aos romances caribenhos em contraposição aos de outros escritores de língua inglesa, francesa ou espanhola − opinião partilhada por Sorayda P. Isaac, que prefacia alguns dos seus livros na Editorial Impedimenta (Espanha).
O galardão New Academy Prize em 2018 veio, assim, a dar um fôlego à sua importância literária. No artigo Giving voice to Guadeloupe***, revela: «O prémio foi para mim uma surpresa total. Além de orgulhosa e feliz, me senti aliviada. Pela primeira vez, fiquei em paz comigo mesma. Eu escrevia há anos sem nenhum reconhecimento especial. Quando os franceses distribuíam, em todos os outonos, os seus famosos prémios literários — o Goncourt, o Femina ou o Renaudot , eu nunca era nomeada».
Foi também fundadora, em 1997, do Departamento de Estudos Francófonos na Universidade da Columbia, e do Prémio das Américas Insulares e da Guiana (uma laureação anual para o melhor livro do panorama antilhano). Também presidiu o Comité pela Memória da Escravidão na França de 2008 a 2013.
Pretende escrever literatura até o fim da vida. Mesmo sofrendo de um distúrbio degenerativo que já atingiu a sua mobilidade, visão e parte da fala, escreveu o romance O evangelho do novo mundo – cuja criação se deu por meio de ditado ao marido e tradutor dos seus livros, o britânico Richard Philcox (que conheceu quando vivia no Senegal nos anos 60) e pelo qual tornou-se, recentemente, a mais velha autora a ser nomeada ao aclamado Man Booker International Prize (2023), aos 86 anos.
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
* Em discurso de agradecimento pelo New Academy Prize – prémio alternativo ao Nobel suspenso em 2018. ••• ** Manteve o apelido do seu primeiro casamento com o ator guineano Mamadou Condé. ••• *** Giving voice to Guadeloupe (NY Review of Books, fev. 2019).
Obra de Maryse Condé disponível em português
📚 À espera da subida das águas (Quetzal, 2023)
📚 Eu, Tituba, Bruxa… Negra de Salem (Maldoror, 2022)
📚 O evangelho do novo mundo (Rosa dos Tempos, 2022 - Brasil)
📚 O coração que chora e que ri: Contos verdadeiros da minha infância (Bazar do tempo, 2022 - Brasil)
Vamos conhecer mais autoras negras da literatura caribenha? Abaixo, destacamos cinco autoras:
Cuba: Teresa Cárdenas (1970) - Galardoada com importantes prémios literários em Cuba (Casa das Américas, Prêmio David, Prêmio Nacional da Crítica Literária), Cárdenas teve suas obras traduzidas e publicadas em diversos países como Canadá, Estados Unidos, Suécia e Brasil. Suas histórias resgatam o legado do povo africano, passeando por temas como diáspora africana, ancestralidade e racismo. Ainda que nunca lhe tenha faltado o amor e o cuidado de sua mãe, teve uma infância difícil, marcada pela pobreza, costumando refugiar-se nas histórias, mesmo que não encontrasse nelas ninguém igual a si – todas as protagonistas eram “loiras de olhos azuis vivendo em castelos”, enquanto Cárdenas dividia a cama com a mãe e a casa com outras sete famílias. A autora de Cartas para a minha mãe e Cachorro velho vê a escrita como um poderoso instrumento de resistência, fortalecimento e transformação para as mulheres. Gosta de retratar “anti-heróis, pessoas que são muito humanas em suas ações, que podem ser violentas, que podem ser tristes e amar desmesuradamente sem dizer uma palavra.”
Martinica: Françoise Ega (1920-1976) - Lembram-se de Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, que lemos em 2022? Pois bem. Françoise Ega trabalhava como empregada doméstica na França, nos anos 60, quando descobriu Carolina e seu livro numa revista. A partir daí, passou a dialogar literariamente com ela a partir de inúmeras cartas (que nunca foram enviadas). Num tom intimista e autobiográfico, tais cartas falam de injustiça e exploração social, em especial dos imigrantes e das tensões de classe na relação patroa vs. empregada. Ega se diferencia socialmente de Carolina por estar num ambiente mais estável (casada, e com diploma de datilógrafa que lhe permitia conseguir outros trabalhos), e por não estar numa situação tão difícil do ponto de vista financeiro, muitas vezes trabalhando como doméstica mais como parte de uma investigação literária do que por necessidade, como deixa claro este trecho de Cartas a uma negra:
“Esta aqui me conta como, sob pena de sanção, é forçada a limpar as roupas íntimas da dona da casa. Outra come de pé. Outra é levada a um chalé na montanha e obrigada a buscar água na fonte, a qual encontra apenas depois de remover a neve com picareta. Meu marido resmungou: eu deveria ter ficado em casa. ‘Por que engrossar as fileiras desse gado humano?’, ele disse. É bem simples: nunca poderei falar sobre isso com conhecimento de causa se não souber do que se trata.”
Outro trecho: “Vivo correndo, como todas as donas de casa atoladas em serviço, leio livros condensados… Para escrever alguma coisa, preciso esconder meu lápis, senão as crianças somem com ele e com meus cadernos”.
Os filhos de Ega mantêm uma associação cultural chamada Comité Mam’Ega (contração em crioulo de Madame Ega), com o objetivo de perpetuar o legado da mãe e lutar contra toda forma de exclusão social.
Antígua e Barbuda: Jamaica Kincaid (1949) - Partilha com Maryse Condé uma carreira de alta respeitabilidade na literatura antilhana e é autora premiada de romances como Lucy, Annie John e A autobiografia da minha mãe. Atualmente, vive nos Estados Unidos, onde leciona Estudos Africanos e Afro-americanos na Universidade de Harvard. Seus livros tratam do racismo, do pós-colonialismo e da experiência da mulher negra caribenha.
Porto Rico: Mayra Santos-Febres (1966) - Além de escritora e crítica literária, Febres ensina Escrita Criativa na Universidade de Porto Rico. Poeta, romancista e ensaísta, tem vários livros publicados, como Sirena Selena vestida de pena, Cualquier Miercoles Soy Tuya e Tercer mundo. Seus textos abordam identidade na diáspora africana, sexualidade feminina e fluidez de gênero, e tanto o erotismo como as relações entre desejo e poder são alvo frequente da sua escrita. Para a autora, o erotismo se relaciona com a própria identidade caribenha: “há um riso, um gozo, uma maneira de pensar o desejo e experimentar o corpo de maneira diferente que é tão valiosa como qualquer outra. Aí é onde me situo, porque não quero ser outra coisa que caribenha.” Ouça Febres declamar um de seus poemas.
Haiti: Edwidge Danticat (1969) - Migrou na adolescência para os EUA e, na contemporaneidade, também é considerada uma das vozes mais proeminentes da literatura de expressão caribenha. É detentora de uma numerosa produção de romances e contos, que habitualmente trazem o Haiti no centro ou em muito retratam sobretudo o tema da identidade e da imigração (uma causa pela qual, inclusive, vem recebendo diversas honrarias literárias e sociais). Clara da luz do mar é o seu único título traduzido em português.
📍 The Salem Witch Trials - Exibição virtual (PEM, Salem, Massachusetts) - uma exposição com documentos e objetos raros que revelam as histórias dos Julgamentos das Bruxas de Salem através da perspetiva das acusadas e dos acusadores (para ler alguns textos, basta dar zoom).
📌 24-31 out. | Porto | Confira a programação da Festa do cinema francês;
📌 2-12 nov. | Braga | 1.ª edição do Utopia - Festival de Literatura (reserva de bilhetes no website) - destacamos as seguintes sessões:
05/11, 15h - Em que língua escrevo o português (Carla Muhlaus, Manuella Bezerra de Melo e Nara Vidal);
10/11, 18:30h - Entrevista de vida a Lélia Wanick Salgado (produtora do documentário brasileiro O sal da terra);
11/11, 16h - Entrevista de vida com Ludmila Ulitskaya (prestigiada romancista russa);
12/11, 16h - A Utopia da escrita feminina (com Filipa Fonseca Silva, Teolinda Gersão, e Isabel Cristina Mateus);
12/11, 18h - Entrevista de Vida a Lídia Jorge (uma das autoras portuguesas em votação para o LM Porto de 2024).
📌 13-19 nov. | Espinho | Confira a programação do Cinanima - Festival Internacional de Animação de Espinho.
📅 Confirme a presença no nosso encontro de outubro: «Eu, Tituba, Bruxa… Negra de Salem» (importante para prever a média de participantes e o n.º de assentos a serem disponibilizadas pelo espaço).
Nota: Comunicamos que mediadora Alice Rangel Teixeira – que idealizou e implementou esta newsletter – não fará mais parte da organização do Leia Mulheres Porto, em razão da sua mudança de país.