"A maternidade, como a escrita, é extremamente solitária"
Entrevista com Andréa del Fuego, e seleção das leituras de verão: julho e agosto
Logo quando preparávamos esta edição da Newsletter, tive a sorte de topar com a obra Mi Madre (2021) da artista espanhola Carmen Calvo. Feminil, doméstica, e embotada, a peça é sobretudo enigmática. Transmite o fascínio que talvez todos tenhamos com a relação materna, que tanto cativou artistas, mas que conserva algo indizível. O livro deste mês, A Pediatra, explora o tema de forma singular e inovadora. Assim como Calvo, Andréa del Fuego, e as escritoras recomendadas na sessão de dicas de leitura, tocam nesse incomunicável indo ao limite da linguagem para expressar a complexidade da figura maternal.
– Alice Rangel Teixeira

A escritora brasileira Andréa del Fuego – pseudónimo que advém de um período em que escrevia contos eróticos e respondia dúvidas sobre sexo numa coluna jornalística – nasceu na cidade de São Paulo e é graduada em Filosofia pela prestigiada Universidade de São Paulo (USP). Sua carreira na escrita literária perpassa por romances, contos e livros infantojuvenis, sendo que o primeiro romance “Os malaquias” (lançado em 2010 no Brasil, e em 2012 em Portugal, pela Porto Editora) lhe valeu o Prémio José Saramago – “atribuído a uma obra literária, escrita em língua portuguesa por jovens autores”.
A entrevista a seguir foi conduzida via e-mail e versa sobre tópicos em torno do seu último romance, “A pediatra”, nossa leitura do mês de Junho.
– Li que parte da sua inspiração para “A Pediatra” partiu do livro “Canção de Ninar” [lida em julho de 2022 no Leia Mulheres Porto], da Leila Slimani. É possível encontrar reflexões similares sobre a opressão da maternidade na voz da Cecília. Essa recusa da personagem em aceitar o papel esperado da mulher enquanto reprodutora e cuidadora, em diversas instâncias, foi intencional?
Andréa del Fuego: A obra de Leila Slimani parece ter disponibilizado em mim o meu próprio repertório materno para a literatura. Sem querer dizer com isso que eu falaria sobre minha própria experiência, mas usar a urgência desta fala no tom do livro. A personalidade da Cecília está a serviço da fala expressiva, neste sentido, ela poderia ter qualquer profissão. Ao final, tudo o que temos são palavras, pontuação e frase, é a materialidade do texto. É como tirar som de uma madeira.
– Sendo pesquisadora do feminismo e da bioética, vejo na trama central uma reflexão sobre a medicina patriarcal, que, ao desconsiderar o lado humano da medicina e o caráter integral do bem-estar de um indivíduo, opera como reforçador das desigualdades sociais. Como foi o feedback das leitoras sobre esse ponto? Essa discussão trouxe algo de novo para sua própria compreensão da relação da mulher com a medicina?
AdF: Eu sempre me interessei pela medicina e ela sempre me atravessou, como nos atravessa a todos. Agora, entrando no climatério, vejo outra vez o mistério do corpo feminino se submetendo ao atendimento médico para entender o novo corpo. Há uma assimetria nesta relação, pois médico sabe algo do nosso corpo que não sabemos (ainda). Por isso, é uma área que precisa, na minha opinião, estar atenta à linguagem, abordagem e cuidado. Recebi muitos retornos de médicos identificados com a angústia da personagem numa chave de humanização do médico, já que não se trata de pessoas especiais, todos falham mais do que nós pacientes gostaríamos de saber. Há então o médico real e o idealizado, uma ambivalência. A relação da Cecília com a medicina, por exemplo, é uma relação masculina no sentido da territorialidade, competição e metas, ainda que ela as recuse.
– Você comentou em outras entrevistas que a escrita de “A Pediatra” foi rápida, cerca de um mês. Mas, antes da escrita, fez algumas tentativas até encontrar a voz para o livro. Pode comentar como foi esse processo criativo, desde a concepção da ideia, passando pelos ensaios na voz, até chegar ao momento da escrita?
AdF: Foram meses reescrevendo as primeiras linhas até encontrar o tom, não é algo que possa ser definido, é um tato com o texto, uma escuta do texto.
– Ainda sobre o processo criativo do livro, ele me lembrou a forma como a Rachel Cusk fala do seu processo, que não envolve uma escrita diária, mas sim um exercício mental diário. Você também já mencionou que, mesmo durante esse processo bastante imersivo, sua escrita era condicionada ao horário que o seu filho estudava. E, na escrita de outros livros, seu tempo livre era curto e intermitente. Aqui, me lembrei da Jenny Offill, ao falar da construção de “Departamento de Especulações".
Acredita que o processo criativo para escritoras é diferente do que tradicionalmente escutamos em entrevistas de autores homens? Que conselho daria para mulheres que desejam escrever, mas acreditam que não têm a disponibilidade de tempo necessária?
AdF: Muita coisa precisa dar certo para escrever. A mulher é muito mais sobrecarregada que o homem quando se pensa na maternidade, que, assim como a escrita, é extremamente solitária. É preciso disciplina, ou melhor, um compromisso com a escrita para que ela vá se fortalecendo até ganhar território não só no campo interno, mas no corpo do cotidiano, exatamente como nos diz Virginia Woolf em “Um teto todo seu”.
– Você foi a segunda mulher a ser distinguida pelo Prêmio José Saramago, em 2011. Apenas outra escritora, a também brasileira Adriana Lisboa (2003). Diante disso, acredita que o mercado editorial ainda privilegia autores homens? Sente alguma mudança desde que iniciou sua carreira como escritora?
AdF: Acho que esse panorama vem mudando a olhos vistos. Não só mais escritoras publicam (sempre escreveram), como há mais mulheres em toda cadeia literária: tradutoras, curadoras, capistas, revisoras, juradas, críticas, editoras, livreiras e, acima de tudo, leitoras. Acho que é um caminho sem volta.
– Que autoras influenciaram a sua trajetória?
AdF: Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst.
– Que autora você descobriu recentemente?
AdF: Debora Levy.
– Quais são seus próximos projetos? Podemos esperar algo este ano?
AdF: Terminar um romance em curso há seis anos, revisar, entender o que está ali. Também organizar contos escritos durante vinte anos numa seleta. Nada para este ano de 2023.
– Algum plano para novos cursos presenciais ou online?
AdF: Gosto tanto de mediar oficinas de escrita literária quanto de escrever, é um campo vivo, vivíssimo. Este ano darei um aulão presencial em São Paulo e devo abrir oficina online em meados do segundo semestre.
🔔 O nosso encontro para debater A pediatra será na Livraria Exclamação (R. de Aníbal Cunha, nº 263) das 15h às 17h. Confirme a presença!
📚 Rachel Cusk - Trilogia Esboço: Um olhar sobre a relação de pais e filhos através de Faye, uma mulher por onde todas as vozes da trilogia passam enquanto ela procura sua voz após o divórcio.
📚 Jenny Ofill - Departamento de Especulações: Narrativa fragmentada sobre possibilidades, perdas e caminhos entre a maternidade e a vida criativa.
📚 Deborah Levy - Coisas que não quero saber: Primeiro livro da sua trilogia de memórias (Uma autobiografia vivida), reflete o caminho para realização artística da mulher enquanto narra o crescimento da própria Levy no Apartheid na África do Sul e em Londres nos anos 1970.
📚 Lygia Fagundes Telles - A confissão de Leontina (conto em O cacto vermelho 1949 - leia aqui): No formato monodiálogo, Leontina narra sua vida, seus sacrifícios ao assumir o lugar da mãe, cuidando de sua irmã, e do seu primo para que este se torne médico, até o momento que a levou a matar um desconhecido.
📚 Clarice Lispector - A menor mulher do mundo (conto em Laços de Família 1983 - leia aqui): "E, mesmo, quem já não desejou possuir um ser humano só para si?"
🎞 Recomendamos, também, o episódio da Andrea del Fuego na série Herdeiros de Saramago (espécie de documentário em torno dos escritores que venceram o Prémio José Saramago - todos os episódios estão disponibilizados no website da RTP).
Leituras selecionadas para julho e agosto | 2023
📌 Julho | Dedicado a Annie Ernaux: “O acontecimento”, de Annie Ernaux (ed. Livros do Brasil, 2022, 96 págs.) - Votação pública
📌 Agosto | Indicações de participantes: “Os abismos”, de Pilar Quintana (ed. Dom Quixote, 2022, 200 págs.) - Votação das mediadoras
🎶Entre 01 a 09/07 acontece a 32.ª edição do Serralves Jazz no Parque (2023) (programa aparentemente gratuito);
📖 Dia 01/07, logo após a sessão do Leia Mulheres Porto, a Livraria Exclamação lançará o livro de poesias No meu corpo moram pássaros cor de vento;
🎬 Dia 02/07, o cinema Batalha exibe a performance-filme Spillovers (parte de Lesbian peoples: material for a dictionary) no âmbito do ciclo de cinema Contra-Fluxos.