Do México a Portugal, confira o que lemos em março & abril
...e as dicas literárias advindas daí!
🌪️ Março: Por trás de Temporada de furacões, de Fernanda Melchor
Altamente prestigiada nos últimos tempos, a escritora Fernanda Melchor emergiu como mais um nome proeminente dentre as figuras literárias da América Latina (tradicionais e contemporâneas, sendo estas últimas fortemente protagonizadas por mulheres) e, ainda mais amplamente, da literatura em espanhol. ✨
Sua obra literária é mormente ambientada no México rural, retratando personagens imersos em diversos estratos de violência, pobreza, marginalização e vulnerabilidade – tendo reverberado, precisamente, pela intrínseca aptidão da autora em ora capturar, ora denunciar esse contexto arraigado de negligência, injustiça e desigualdade que molda sistematicamente a vida dos indivíduos.
Em Temporada de furacões, leitura de março do nosso clube e romance que a catapultou para o reconhecimento internacional, ela lança mão da violência de género, da misoginia e da depravação moral, social e psicológica para expor aspetos impetuosos da natureza e da condição humana que, ao fim e ao cabo, coexistem na nossa superfície comum.
Nota roja; Literatura de crime
A trama principal da obra tem inspiração no caso real que aconteceu em Veracruz, no México, terra natal de Melchor. Como trabalhava no departamento de Comunicação Social da Universidad Veracruzana, onde se formou em Jornalismo, tinha acesso a vários jornais e publicações de circulação local, e num desses deparou-se com uma pequena nota sobre uma mulher encontrada morta em canal situado num vilarejo próximo, cuja motivação indicava uma suspeita do assassino de que ela havia praticado espécies de feitiço para mantê-lo apaixonado por si. Nas palavras de Melchor:
“I was surprised because the journalist told the story in a way that made it sound normal to think that a crime could be motivated by witchcraft…” (Cf. Fernanda Melchor on 'Hurricane Season).
Bastante popular no México (e desde a época da Inquisição!), esse tipo de abordagem grotesca e, ao mesmo tempo, trivial sobre casos chocantes é o que permeia a chamada Nota Roja (nota vermelha, em tradução literal): seções específicas em diferentes jornais e revistas do país, que retratam toda a sorte de crimes hediondos, acidentes sinistros, tumultos, fofocas e difamação etc., e são frequentemente acompanhadas de manchetes sensacionalistas, fotografias não censuradas e breves textos sem real fundamentação acerca de cada episódio.
Antigas ilustrações e histórias exageradas que caracterizavam a Nota Roja nos tempos iniciais deram, assim, lugar a diferentes versões de um mesmo género do jornalismo que foi sucessivamente absorvido pela população mexicana, permanecendo instigante o suficiente para cativar leitores de todas as épocas. De facto, em 1964, o escritor mexicano Jorge Ibargüengoitia, que lia e analisava frequentemente as notas rojas e nelas se inspirou para a criação de algumas de suas obras, mencionou que “sentia que elas refletiam a moralidade da época”, dando também a conhecer a realidades que normalmente não apareceriam nos jornais.
Conforme foi tornando-se parte da tradição jornalística do México, a nota roja foi ligeiramente incorporada nas artes, literatura, cinema, televisão… De acordo com o portal online do Museu Dolores Olmedo, a obra Unos cuantos piquetitos (1935) surgiu após a célebre pintora Frida Kahlo ler num jornal especializado nesse tipo de cobertura que um homem em estado de embriaguez havia matado a cônjuge após desconfiar de uma infidelidade e, diante dos tribunais, defendeu-se com a frase que dá título à obra, “Pero si sólo le di unos cuantos piquetitos!”[1]. De acordo com o reportado à época, foram cerca de 20 punhaladas.
Mais de séculos após o seu surgimento, o jornalismo à la nota roja continua a apresentar histórias que chamam bastante atenção e fazem parecer tênue a linha entre realidade e ficção. Talvez por essa razão Melchor tenha sido muito bem-sucedida ao abordar o feminicídio (um assunto ancestral das notas rojas) através da ficção, ao invés de seguir a rota de uma investigação detalhada do crime, como inicialmente pretendido, inspirada no trabalho do escritor americano Truman Capote.
Confrontada pelos perigos do ambiente violento de Veracruz, controlado por cartéis de drogas, a autora mudou a empreitada e recorreu à ficção, assumindo que esta proporcionava um meio mais seguro, e igualmente profundo, de não apenas explorar as nuances do ato em si, mas também de pintar um retrato vívido do contexto, circunstâncias e questões subjacentes que o cercam — oferecendo ao público uma reflexão penetrante sobre a natureza da violência e as suas raízes na sociedade contemporânea:
Dado que quería explorar a través de la ficción lo que se encuentra en el corazón de un acto violento, pensé que la mejor manera sería rodear el acto criminal, comenzando desde las afueras de una comunidad, desnudando su contexto y mitologías, y luego cortando progresivamente a través de las diferentes capas de fantasías, motivos, chismes y fabricaciones que giran en torno a un crimen horrible. Dado que me resultaba muy difícil representar el verdadero sentido del asesinato, decidí que la víctima y el perpetrador debían permanecer en silencio, como el vacío en el centro de un huracán. Pensé que era lo más honesto que podía hacer. (Em entrevista a The Punch Magazine).
[1] Frida Kahlo se enteró del feminicidio a través de un periódico de nota roja.
Cinzas na boca, de Brenda Navarro (2023, editora brasileira Dublinense | Tradução de Julia Dantas).
Chamada por Fernanda Melchor de “um dos mais bem guardados segredos da literatura mexicana”, Brenda Navarro nasceu no México, mas se radicou em Madri. Formada em Sociologia e Economia Feminista na Universidad Nacional Autónoma de México e mestre em Estudos de Gênero em Barcelona, tem, assim como Melchor, uma prosa informal e rápida, quase frenética. Estreou na literatura em 2019, com o romance Casas vazias e fundou um projeto focado em publicar obras escritas por mulheres (o #EnjambreLiterario).
Cinzas na boca, publicado originalmente em 2022, conta a história de uma jovem mexicana com uma história familiar perturbada pela ausência da mãe, que emigrou para a Espanha. Quando a protagonista e seu irmão conseguem finalmente se juntar à mãe, a vida não fica mais fácil: a distância entre eles continua lá, marcando uma ausência frequente (muito bem captada na ilustração da capa) e agora ainda há que se lidar com as dificuldades e estranhezas de ser um imigrante tentando (re)construir a vida no país “colonizador”.
Além das semelhanças com Temporada de Furacões quanto à forma narrativa, Cinzas na boca também apresenta um retrato pungente da violência de classe e de gênero na sociedade mexicana.
“Mas quem era, vó? Você tem que me dizer. Mas não disse nada. Não se incomode, aprenda a ouvir e a ficar em silêncio, ela disse, e ficamos sentadas e caladas, sem olhar uma pra outra até que o meu avô entrou, com um olhar que eu nunca tinha visto nele antes, e nos disse: Não saiam de casa, está acontecendo alguma coisa, não sei o que é, mas não saiam de casa, eu já volto. Mas eu reagi e levantei do sofá: Não, você não vai sair sozinho, eu vou com você. A minha avó gritou sei lá o que mas eu já estava colocando a minha jaqueta e saindo com o meu avô. Peguei na sua mão e fui junto. A última coisa que ouvi da minha avó foi uma pergunta sobre a minha tia, mas da minha tia ainda não sabíamos nada” (Brenda Navarro, em Cinzas na Boca)
O diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo (2012, editora José Olímpio, tradução de Mário Pontes).
Filha de um alemão com uma mexicana de ascendência indígena e espanhola, Frida iniciou sua trajetória artística aos 20 anos, em 1927 e se tornou uma figura emblemática da cena cultural mexicana. Até sua morte, aos 50 anos, produziu cerca de cem quadros e influenciou importantes pintores de seu tempo, como Diego Rivera, José Orozco e David Alfaro Siqueiros.
Entre 1944 e 1954, Frida manteve um diário onde documentou seu processo criativo, sentimentos, ideias e inclinações políticas. Além de desenhos belíssimos, O diário permite conhecer um pouco os pensamentos desta grande artista.
“Julho de 1953, Cuernavaca
Pontos de apoio
Em todo o meu corpo existe apenas um, e eu quero dois. Para ter os dois terão de me cortar um. O um que não tenho é o que tenho de ter para poder caminhar. O outro já deve estar morto! Para mim, as asas são supérfluas. Mesmo que as cortem, eu voarei!!”
(Frida Kahlo, O diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo)
A planície em chamas, de Juan Rulfo (2003, editora Cavalo de ferro, tradução de Ana Santos)
Elisa Miller, cineasta que adaptou Temporada de Furacões para as telas, chamou Melchor de “Juan Rulfo desta geração”. Apesar de só ter publicado dois livros (Pedro Páramo e El llano en llamas – traduzidos para diversos idiomas), Juan Rulfo (1917-1986) foi uma figura importantíssima na cena literária mexicana e é considerado o principal precursor do Realismo Mágico – influenciando nomes como Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia Marquez e Julio Cortázar.
Os contos de A planície em chamas trazem um retrato do México profundo, com desertos áridos que testam os limites da vida e personagens que vivem intensamente, ainda que imersos num cotidiano de pobreza, violência e falta de perspectivas. A linguagem de Rulfo é direta, coloquial e marcante.
“Nunca tinha sentido que a vida fosse tão lenta e violenta como ao caminhar entre um amontoado de gente; tal como se fôssemos um caldeirão de vermes a formar pelotões sob o sol, retorcendo-nos entre a escuridão do pó que nos encerrava a todos na mesma vereda e nos levava encurralados. Os olhos seguiam a poeirada; batiam no pó como se tropeçassem contra algo que não se podia trespassar. E o céu sempre cinzento, como uma mancha cinzenta e pesada que nos esmagava a todos lá de cima.”
(Juan Rulfo, trecho extraído do conto Taipa, de A planície em chamas)
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🌹Abril: Uma escolha premiada
O mês de Abril, tão caro ao país, dedicamos a ler a literatura portuguesa e, logo, juntamo-nos na celebração de uma Revolução que, é importante reiterar, propiciou o florescimento e reconhecimento de um grande número de autoras portuguesas – muitas ainda hoje vivas e ativas −, as quais desempenharam papel vital com grandes obras que enriqueceram o cânone literário moderno do país.
Dentre Um cão no meio do caminho, de Isabela Figueiredo, e A história de Roma, de Joana Bértholo, Marido e outros contos, de Lídia Jorge, foi o livro selecionado, por votação de participantes do clube, para ser a nossa leitura do mês, e coincidentemente a escolha não poderia ser mais premiada. Isso porque a autora encontra-se entre uma das mais aclamadas do momento na mídia literária nacional e internacional – reconhecimento este que cresceu especialmente após o lançamento do romance Misericórdia em outubro de 2022, o qual tem lhe rendido inúmeros prémios desde então.
De fato, até aqui e no auge dos 43 anos de carreira da escritora, Misericórdia conquistou o importante Prémio Médicis Étranger na França (que empatou com Adeus impossíveis, da sul-coreana Han Kang); o Prémio Fernando Namora; o Grande Prêmio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores; os prémios Urbano Tavares Rodrigues e do PEN Clube Português, além de ter sido reconhecido como o Melhor Livro Lusófono publicado em França.
Esses números somam-se a uma trajetória já repleta de outros galardões significativos, como o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas de Guadalajara (2020); Prémio Vergílio Ferreira (2015); Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura (2014); Prémio Correntes d’Escritas (2002), ou o Prémio Jean Monet de Literatura Europeia, Escritor Europeu do Ano (2000).
A impressionante lista de prémios e honrarias conquistados pela autora é mais do que um testemunho do impacto duradouro de sua obra na literatura portuguesa e além-fronteiras. No último sábado, dia 27.04, mergulhámos na antologia Marido e outros contos, e precisamente o conto Marido tornou-se o favorito! Agora, convidamos a quem nos lê a se encantarem com a obra dessa autora ilustre. 🏆✍️
Para este mês, as respostas e sugestões de três convidadas nossas à pergunta “Que escritora portuguesa você indica e por quê?”
SOFIA LEAL INDICA
Por que: não se perde em simbolismos, com sua escrita econômica que diz apenas o necessário, focando-se nas personagens e na narrativa. Recomendar Isabela Figueiredo é sugerir uma leitura aconchegante, centrada nas personagens e nas peculiaridades do dia a dia.
Por que: não só pela sua poesia erótica, mas também pelo seu papel como deputada e defensora dos direitos humanos e das mulheres. Com ela, aprendemos não só a não temer as palavras, mas a ver a poesia como uma arma apaixonada contra a opressão na conquista da liberdade.
CRISTINA OALVES INDICA
Por que: O começo de um livro é precioso.” Tal como o começo do percurso literário de Maria Gabriela Llansol, que dá-se com o livro Os pregos na erva (1962), obra que traça uma nova forma de escrever, embora estruturalmente se assemelhe a um livro de contos. Uma escrita tradução, uma escrita ação, uma escrita que nos deixa ver o interior tornado exterior e o seu contrário. Uma escrita que se sente como leitura, corpórea e participativa.
Conheci a escrita da Maria Gabriela Llansol com Um beijo dado mais tarde (1990), um livro de tónica poética e autobiográfica, senti um piscar de olhos e acedi ao tempo futuro. E mais quis ler. Uma leitura que se sente escrita, que envolve e transforma. Foi assim o começo da descoberta do universo llansoliano, dos seus personagens-processo, que ressurgem em vários dos seus livros – Témia, Eckhart, Ana e Myriam, João da Cruz, Prunus Triloba, Spinoza, Bach, Rilke, Vergílio Ferreira, Dom Arbusto, Elvira, o cão Jade ou Trova, o Literatura, o Arrábido – dos seus conceitos metamorfoseantes, dos quais destaco os de legente / escrevente e dobra, porque o texto é a mais curta distância entre dois pontos. Eduardo Prado Coelho referiu que cabe a cada um de nós encontrar uma porta para entrar nesta "estranha" obra, eu diria, pelo pulsar da sua escrita, que a porta está em nós, ao abrir, mesmo numa nesga, ela entra e a cada palavra, aproxima, fica.
ANDRÉIA MORAIS (@Portugalid[Arte]) INDICA
As primeiras referências literárias femininas que tive foram Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, graças à coleção Uma aventura. Há muitos títulos que me faltam, mas as narrativas abriram portas para um mundo de possibilidades, por isso, ler mulheres tornou-se um processo de escolha intencional.
Enquanto mulher que escreve e que lê, quero rodear-me de autoras que me inspirem e, felizmente, no panorama literário português temos muitos escritoras extraordinárias. Na impossibilidade de mencionar todas, permitam-me destacar as obras de quatro delas.
✏️ As coisas que faltam, Rita da Nova
As coisas que faltam é a história da Ana Luís, uma menina de oito anos que não conheceu o pai, porque nunca lhe foi concedida essa permissão por parte da mãe. É impressionante como nos pode pesar tanto o que não conhecemos e como há ciclos que, inconscientemente, tendemos a repetir. Mas, no meio de tudo o que sentimos estar em falta, vamos compreendendo o que nos pertence, qual é o nosso lugar.
✏️ Coisas de loucos, Catarina Gomes
Aquando da sua visita ao primeiro hospital psiquiátrico português, o Miguel Bombarda, a autora encontrou uma caixa de cartão com objetos de antigos pacientes. E abraçou a missão de descobrir as vidas dos seus donos e de contar as suas histórias. Coisas de loucos quebra estigmas e incentiva-nos a refletir sobre liberdade e sobre a sensação de tempo suspenso. Através daquilo que oito pessoas deixaram no manicómio e deste livro que as resgata do esquecimento, há um legado que deixou de estar perdido naquela caixa.
✏️ Mary John, Ana Pessoa
Mary John é uma longa carta dirigida a Júlio Pirata, na qual Maria João, a protagonista, faz um balanço de tudo o que viveram juntos. O relato é melancólico, é engraçado, é comovente, por esse motivo, transforma-se numa viagem de reencontro, de despedida, de mudança e, inclusive, de catarse. Acho que a Andreia adolescente teria beneficiado de um livro assim, porque é um retrato verosímil do desnorte, da dificuldade que é construirmos a nossa identidade, do impacto que certas relações/pessoas têm na nossa vida e do quanto parecem pairar em todos os nossos passos.
O mergulho neste Aquário revelou-se mágico e uma experiência enriquecedora, porque a Capicua tem poesia na alma e consegue, com muita pertinência e empatia, envolver-nos nos assuntos mais diversos. E mesmo quando estes não nos servem, por não os vivenciarmos [como a maternidade, no meu caso], há um laço que nos une, que nos deixa predispostos a escutar/a ler, já que se torna quase palpável o seu entusiasmo ou o seu inconformismo; o seu fascínio pelas pequenas coisas ou a fúria perante cenários que diminuem o outro.
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Próximo livro: O coração é um caçador solitário, de Carson McCullers. Dia 25.05, na Livraria Poetria (mas atenção que possivelmente ocorrerá uma alteração no horário, ainda a ser divulgada).
Obrigada pela oportunidade 😍